A primeira impressão que me ocorreu quando vi as cisternas da Índia foi esta: parecem um delírio de degraus e patamares invertidos, uma imersão nas profundezas do deserto tão desconcertante quanto o impulso por um abismo. Realçados pelo jogo de luz e sombra, esses degraus formam uma espécie de mantra arquitetônico de estupendo efeito visual, provendo aquelas escadas de um ritmo vertiginoso e repetindo um padrão que arrebata pela escala e pela multiplicação, não muito diferente de um jogo de espelhos que reflete um espaço ad infinitum.
Como podem essas escadarias intermináveis desempenhar uma função tão prática e poética a um só tempo? Como podem estas obras sublimes serem tão desconhecidas, inclusive na Índia? Por que essa engenhosidade que aqui gerou espaços tão úteis quanto fantasiosos, dificilmente ocorre nas construções dos nossos dias? Que fabuloso seria se, assim como este exemplo distante no espaço e no tempo, as técnicas de uso da água fossem reinventadas para então reaproximarmo-nos da água e dos rios das nossas cidades.
Há casos raros na história da arquitetura em que forma e função caminham lado a lado, indissociáveis, numa simbiose além de qualquer dúvida que leva à dignidade das grandes obras. As cisternas dos estados do Rajastão e Gujarat são infraestruturas admiravelmente engenhosas onde o necessário junta-se ao ritualístico e ao político em uníssono. Ao necessário porque foram construídas naqueles que são os estados mais secos do país; ao ritualístico porque a água faz parte das cerimônias do Islamismo e do Hinduísmo; e ao político porque o acesso à água significava poder e prestígio àqueles que construíam cisternas públicas e reservatórios.
O culto do Islã sempre esteve ligado à água. Toda mesquita tem uma fonte no centro de um grande pátio onde os fiéis devem fazer suas abluções, lavando pés, rosto e mãos antes da prece e em sintonia com o clima quente da região. O Hinduísmo também é uma religião essencialmente praticada na presença da água: esta funciona como agente de purificação e é reverenciada por meio das escadarias que margeiam não só as cisternas, mas também lagos, rios e reservatórios. Benares é a cidade mais sagrada da Índia e seu epicentro são as mais de cem escadarias ao longo do Ganges, rio cujas águas são vistas pelos hindus como amrita, ou elixir da vida. E talvez não seja exagero afirmar que as escadas d’água são o elemento arquitetônico por excelência da arquitetura religiosa hindu.
Obras de mecenas e patronos das artes que funcionavam como serviço social, templos e lugar de encontro de mulheres numa sociedade ainda hoje separada por gêneros, não é à toa que várias cisternas foram construídas por mulheres (princesas, rainhas, esposas de mercadores) e para mulheres. E coincidentemente, as três principais publicações sobre o tema atualmente disponíveis nas livrarias foram escritas por mulheres.
De qualquer maneira, é incrível a pouquíssima informação disponível sobre esses prédios. No clássico de 1.000 páginas History of Indian and Eastern Architecture só há meia página dedicada às cisternas e nenhuma ilustração. Poucos dos guias turísticos indianos que me acompanharam durante minha viagem as conheciam, e apenas três são brevemente citadas no guia turístico Rough Guide India, de 1.200 páginas.
No Gujarat elas já foram milhares. Várias foram soterradas pelos ingleses e muitas foram esquecidas, mas, graças ao trabalho da Archeology Survey of India, hoje muitas encontram-se em surpreendente estado de conservação, ainda prestando-se como fonte de água durante os nove meses do ano quando não ocorre qualquer precipitação na região.
E aqui, no limbo da história de um país distante, ficam evidentes os erros que foram cometidos ao desprezarmos os recursos naturais dos quais dependemos. No Brasil, país que trata suas águas e seus rios com irresponsabilidade histórica, esse elogio dos aquíferos do deserto é uma lição que aponta para a óbvia importância de administrarmos um recurso que, entre nós, só recentemente se mostrou escasso.
Carlos M Teixeira é arquiteto e sócio do escritório Vazio S/A.